quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Pessoas sobre o sol de Gilberto Amendola

Pessoas sobre o sol de Gilberto Amendola
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Não bastasse o calor, o elevador parou entre o 4º e o 5º andar. São 7 pessoas dentro dele. Gente que mal se conhece e não tem nenhum assunto fora o próprio calor. “Quente, né?”, diz o mais ansioso – meio que dando um ponta pé inicial na conversa.
Pois bem, não fossem as condições climáticas seríamos uma raça muda. Pegaríamos táxi em silêncio, cortaríamos o cabelo em silêncio e dividiríamos mesas de trabalho no mais absoluto silêncio.
Mas, com a intervenção do ansioso, a roda aleatória das conversas sem propósito começou a girar: “nossa, que inferno”; “esse ano a gente não teve inverno”, “e ainda vai faltar água”, “bom pra quem está na praia”,  “quem sofre é o meu cachorro” e “esse deve ser o segundo sol que a Cássia Eller tanto cantava”.
Bastaram essas simples colocações para o ansioso traçar um perfil de cada um daqueles moradores presos no elevador:
1) O Homem de família (“Nossa, que inferno”): Quando sente calor, o homem de família pensa logo em inferno. Simplista. Metáfora de desenho animado. Mas um retrato claro da vida daquele homem – que não tira o inferno da própria boca. Não gosta do trabalho, mas aguenta pelo salário; já não ama a mulher, mas suporta pelos dois filhos. Tem uma vida pé no saco e preferiria ser torrado sob sol escaldante de São Paulo.
2) O Saudosista (“Esse ano a gente não teve inverno”): Ele tem mais de 50 anos e a certeza de que o melhor da vida já passou. Na memória, guarda imagens idílicas da infância, de um tempo em que as folhas no chão da rua indicavam o outono, de um tempo em que se usavam pesados casacos de couro porque, claro, era inverno. Hoje, o saudosista está confuso, o mundo anda muito misturado e ele prefere cada coisa em seu lugar.    
3) A indignada (“E ainda vai faltar água”): Leitora de jornais, ouvinte de rádio e conversadora de padaria. Gosta de reclamar, mas, às vezes, perde o fio da meada da própria reclamação. Se a conversa avançasse um pouquinho, a indignada culparia a Dilma, o Lula e o Lulinha pela falta de água. Torce pela volta da ditadura, luta contra o comunismo e sabe que prefere bandido morto.
4) A sonhadora (“Bom pra quem está na praia”): Ela nunca está totalmente feliz no lugar em que se encontra. Mais do que isso, ela nunca está feliz na própria pele. Hoje, ela queria estar na praia, mas ontem mesmo repetiu algo como “bom pra quem mora no Japão”. Sempre está bom para os outros, nunca pra ela. Sonha bastante, quer mudar de vida, mas ainda não fez por onde. Bonita, só sai de casa arrumada. Acha que ainda vai encontrar um cara legal. Fuma um baseado aos finais de semana.
5) A solitária (“Quem sofre é o meu cachorro”): Do tipo que deposita todo amor no pet. Separada e sem ânimo para partir para outra, ela decidiu dedicar sua vida aos cuidados do Totó. Quase não tem vida social. Sua melhor amiga é a atendente do Pet Shop, seus maiores gastos mensais são com ração, banho e tosa. Ela fala com o cachorro dela como quem fala com um melhor amigo; às vezes, fala como se fosse um bebê, em outras, parece sussurrar para um amante. Tem filhos adultos, mas eles nunca apareceram no prédio.
6) O nerd: (“Esse deve ser o segundo sol que a Cássia Eller tanto cantava”): Sujeito que trabalha com computador (TI). Do tipo que passa o dia compartilhando bobagens no Facebook e achou o máximo essa sacada que mistura o sucesso da Cássia Eller e o calor insuportável de São Paulo. Quase ninguém no elevador achou graça ou entendeu a referência. Só a sonhadora (“Bom pra quem está na praia”) deu uma risadinha. Aliás, risadinha que foi o suficiente para o nerd se apaixonar e se imaginar casado com a moça.
7) O ansioso (“Que  calor, né”): Sobre o ansioso você já sabe. É aquele que sempre faz um comentário sobre o tempo e tenta puxar uma conversa a qualquer custo. Foi ele, por exemplo, o primeiro a dizer “já não era sem tempo” e “achei que ia morrer cozido aqui dentro” quando o elevador voltou a funcionar – e todos os sete puderam, finalmente, sofrer com o calor do lado de fora do prédio. 

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